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SOMBRAS DA ESCRAVIDÃO

Após mais de um século da chamada “Abolição da Escravatura”, para milhares de brasileiros, a linha ainda se mostra tênue entre trabalho digno e análogo à escravidão.

           Por: Maria Lúcia Silva e Deisy Feitosa

Com colaboração de Eduardo Acquarone,
Danilo de Freitas e Roger Romero 

                            23/07/2023, às 8h

A mácula da escravidão
na história do Brasil

As sombras da escravidão continuam a assolar o Brasil, mesmo passados 135 anos da chamada Lei Áurea. O fato é que a prática nunca deixou de existir em sua essência, e até ganhou novas roupagens na contemporaneidade. Além do chamado trabalho análogo à escravidão doméstica, por exemplo, há também muitos casos relacionados à exploração de trabalhadores em áreas rurais, ligados à produção de commodities, como carvão, soja e algodão. Em 2022, 2.575 trabalhadores foram resgatados; e de janeiro a 14 de junho deste ano, 1.443. Além disso, nos últimos anos, registrou-se o envolvimento de grandes empresas com esse tipo de irregularidade, tais como Zara, M-Officer, Brooksfield Dona, Renner, Marisa, Pernambucanas e Gregory . 

Das 2575 pessoas resgatadas em situação análoga à escravidão, em 2022, de acordo com a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do  Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a maioria se autodeclararam negras: sendo 83% dos homens. Já 61,66% das mulheres resgatadas se autodeclararam pardas, mulatas, caboclas, cafuzas, mamelucas ou mestiças. Inclusive, a região Nordeste teve o maior número de resgates: 51%, e 58% dos trabalhadores eram naturais da região. O mesmo relatório também registrou que foram resgatados 148 trabalhadores migrantes de outros países, incluindo paraguaios, bolivianos, venezuelanos,  haitianos e argentinos. O trabalho análogo à escravidão infantil também foi registrado: 35 crianças e adolescentes foram encontrados em atividades agrícolas, criação de bovinos, fabricação de produtos de madeira e carvão vegetal e confecção de roupas. Do total, 10 eram menores de 16 anos e 25 tinham entre 16 e 18 anos.

A procuradora Andréa Tertuliano de Oliveira, do Ministério Público do Trabalho (MPT), também coordenadora do Núcleo de Combate ao Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas (NETP) da 2ª Região, cita alguns obstáculos enfrentados tanto em áreas rurais como em áreas urbanas, em ações contra o trabalho análogo à escravidão, que dificultam a identificação e a erradicação dessa prática, como a falta de acesso à comunicação e dificuldade de acesso a áreas remotas, onde o trabalhador está, e a pulverização das oficinas de costura. “A estimativa é de que apenas no município de São Paulo existam cerca de 40.000 dessas oficinas camufladas entre as casas”, revela.

 

 

 

 

Além disso, segundo a procuradora, a necessidade de autorização judicial para ingressar nessas residências particulares representa um obstáculo adicional para a fiscalização adequada. “Essa pulverização dos locais de trabalho dificulta a identificação de condições de trabalho degradantes e a aplicação de medidas corretivas. Diante desses desafios, é fundamental fortalecer os mecanismos de combate ao trabalho análogo à escravidão, investindo em estratégias que ampliem a capacidade de identificação e fiscalização. Além disso, a conscientização e denúncia da sociedade são essenciais para combater essa prática abominável”.

Dados Trabalho Análogo à Escravidão.jpg

Liberdade sem perpectivas

Onde estava Isabel

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OBrasil foi o último país de todo o Ocidente a abolir, de forma oficial, a escravidão. Promulgada em 13 de maio de 1988, a Lei Áurea foi assinada pela Princesa Isabel, filha do imperador D. Pedro II. O feito concedeu à soberana os louros de heroína da pátria. Mas esse marco tem sido questionado por muitos historiadores, já que, conforme registros, a abolição não ocorreu do dia para a noite. Neste período, quase não existiam mais pessoas nessas condições, por diversas leis instituídas anteriormente, como a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários, pelo fato de pessoas comprarem a própria liberdade e pela ação de abolicionistas negros revolucionários. 

Além disso, a monarquia também é questionada pelo fato de não ter planejado o futuro desses trabalhadores no período pós-abolição, como enfatiza a professora Antonia Aparecida Quintão, historiadora e presidente do Geledés, Instituto da Mulher Negra: “Ao contrário do que ainda hoje a gente encontra em livros didáticos, a Lei Áurea não libertou da escravidão, muito pelo contrário, a gente costuma dizer que condenou e abandonou a população negra à sua própria sorte, porque é composta só de dois artigos: ‘É extinta a escravidão no Brasil’ e ‘Revogam as disposições em contrário’, ponto final”. 

Segundo a historiadora, mesmo após séculos de exploração, além de não terem sido traçadas estratégias para sobrevivência dessas pessoas, ainda foi aprovada a chamada Lei da Vadiagem, em 1890. “Sem trabalho, como é que você vai garantir o sucesso da sua família? E o que aconteceu na pós-abolição foi que criaram leis que cada vez mais prejudicavam e excluíam a população negra. Por exemplo, com a Lei da Vadiagem, quem seria qualificado como uma pessoa em situação de vadiagem? Aquele que não trabalhava. E quem não trabalhava no Brasil no período da abolição? A população negra. Mas é por que não queria? Não, porque eles eram preteridos no mercado de trabalho, como são até hoje”, observa. 

A fala de Quintão pode ser, inclusive, evidenciada pela última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada pelo IBGE, em agosto de 2022, ao indicar que quase dois terços dos desempregados (64,7%) eram pessoas pretas ou pardas. “O que nós temos é a permanência de uma política que colocou a população negra numa situação de vulnerabilidade da qual até hoje a gente ainda não conseguiu superar”.

O ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, chegou a apontar que desconfia que a ampliação da terceirização, com a reforma trabalhista, pode ter contribuído para o cenário, por isso sugeriu revisões na legislação trabalhista, além de campanhas de conscientização voltadas a empresas que terceirizam. 

Vale dizer que a lista de empregadores flagrados por submeterem os seus trabalhadores a situações de trabalho precário, consideradas análoga à escravidão, é atualizada constantemente pelo Ministério do Trabalho e Emprego e pode ser acompanhada no site GOV.BR. A publicação, também chamada de “lista suja”, é prevista pelo artigo 2º, da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4, de 11 de maio de 2016, como uma forma de dar visibilidade às infrações nesse âmbito e de responsabilizar os envolvidos. A última atualização do cadastro monitorada por esta equipe de reportagem foi realizada em 13 de junho de 2023, e registrava um total de 284 empregadores, dentre eles pessoas físicas e  jurídicas flagradas pela Inspeção do Trabalho.

Apesar de grande parte dos resgates serem realizados na zona rural, Roque Pattussi, da ONG Cami (Centro de Apoio e Pastoral do Imigrante), que se dedica a causas relacionadas a migrantes, refugiados, apátridas e tráfico de pessoas, lembra que eles também ocorrem com frequência em áreas urbanas e podem afetar pessoas de diferentes nacionalidades e perfis socioeconômicos. “O tráfico de pessoas e o trabalho escravo estão presentes no mundo inteiro, não só no Brasil ou em alguma região do nosso país. Quem pode ser vítima? Qualquer um. Nós temos diversas vítimas que foram acolhidas, como jornalistas, por exemplo, pessoas qualificadas e que têm conhecimento das informações caíram na rede do tráfico de pessoas, assim como tivemos médicos, dentistas. Então, não é somente uma pessoa pobre, em uma situação de vulnerabilidade, pode ser qualquer um”, alerta.

Antonia Aparecida Quintão 

"Quem seria qualificado como uma pessoa em situação de vadiagem? Aquele que não trabalhava. E quem não trabalhava no Brasil no período da abolição? A população negra. Mas é por que não queria? Não, porque eles eram preteridos no mercado de trabalho, como são até hoje.”

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Trabalho Escravo ou Trabalho Análogo à Escravidão?

Os termos trabalho escravo e trabalho análogo à escravidão, apesar de terem algumas semelhanças, possuem características diferentes, conforme legisladores e agentes da justiça. De acordo com o advogado Miguel Benavides, que presta serviços à ONG Cami, enquanto no Brasil colônia-império a prática da escravidão era permitida e “envolvia castigos físicos e tortura”, hoje essa forma de exploração é proibida e considerada crime pelo Código Penal Brasileiro, mas isso não impediu que se praticasse a escravidão de uma forma diferente, por isso a nomenclatura “trabalho análogo à escravidão”. Assim, o termo é utilizado para descrever situações em que pessoas são submetidas a condições de trabalho degradantes, como jornadas exaustivas, falta de remuneração adequada, restrição de liberdade e violações de direitos humanos. 

“É importante ressaltar que, nos dias de hoje, ter um trabalhador nas ‘condições de escravizado’ tem custo baixo, porque não há compra. O patrão normalmente gasta apenas com o transporte do trabalhador aliciado até o local  de trabalho. A mão de obra de um trabalhador é descartável, pois a falta de trabalho faz com que os cidadãos desempregados em busca de um serviço aceitem qualquer valor irrisório, e terminam caindo em mãos dos aliciadores, também  conhecidos como ‘gatos’, que são pessoas que traficam pessoas”, analisa Benavides. “O relacionamento entre o patrão e o trabalhador escravizado é curtíssimo. Depois que o serviço acaba, o trabalhador vítima de trabalho forçado é mandado embora sem receber nada ou é morto, para que não possa  denunciar o antigo patrão e entrar na justiça em busca dos seus direitos”. O advogado observa que, em geral, os trabalhadores aliciados costumam ser pessoas pobres e, para os aliciadores, pouco importa a cor, a raça e nacionalidade,  pois ter condições físicas para trabalhar é o único fator importante.  

Segundo a procuradora Andréa Tertuliano de Oliveira, os termos "trabalho escravo contemporâneo" ou "trabalho análogo ao de escravo" são mais adequados aos nossos dias, pois refletem a situação em que a posse e a violência extrema não estão necessariamente presentes, mas existem formas de exploração degradantes. “Na realidade, é uma questão de nomenclatura, mas o trabalho escravo, como a gente imagina, é aquele de séculos atrás, em que a pessoa ficava sob posse e propriedade de outra pessoa”, observa. Ela ressalta que, embora a associação imediata ao trabalho escravo costume ser feita em relação às pessoas negras, trabalhadores de qualquer origem e mais vulneráveis economicamente podem ser vítimas dessa prática. “O trabalhador vítima dessas circunstâncias pode ser de qualquer nacionalidade, de qualquer sexo, de qualquer idade”. 

Oliveira também cita o tráfico de pessoas como uma situação gravíssima relacionada aos direitos humanos, embora nem sempre tenha relação direta com trabalho análogo à escravidão, uma vez que o traficado pode apenas ser tomado como ‘repositor de órgãos’. “No caso do tráfico de pessoas para fim de transferência de tráfico de órgãos, a pessoa acaba sendo morta porque se tira rins, baço, fígado, pulmão, e a pessoa morre evidentemente, porque não dá para viver sem esses órgãos”.

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O historiador Antônio de Almeida conseguiu demonstrar, durante a realização da sua pesquisa de doutorado em História Social, na PUC, a existência da prática do trabalho análogo à escravidão no Brasil, nas lavouras de cana de açúcar. Inclusive, no estado de São Paulo, um lugar que parecia improvável. Ele escolheu estudar o tema “trabalho escravo contemporâneo” em uma época em que, segundo conta, o próprio meio acadêmico não considerava mais a existência da prática. Para isso, buscou fontes primárias, registrou situações por meio de fotografias e percorreu diferentes realidades do Brasil. “Era por volta de dois mil e quatro. Falavam: ‘Ah! Trabalho na cana de açúcar é sazonal, não é escravidão’. Era difícil conseguir provar. Eu comecei, então, a entrevistar as pessoas. Fiquei três meses na Floresta Amazônica, conhecendo casos de escravidão, na prática. Fui para Coimbra e também tentei entender como  funciona a escravidão na Europa. Depois, andei por vários lugares do Brasil, e ficou claro tudo isso nos depoimentos”. Da tese, foi publicado o livro “Trabalho Escravo Contemporâneo: a modernização da casa-grande e da senzala no Brasil”.

Miguel Benavides

" A falta de trabalho faz com que os cidadãos desempregados em busca de um serviço aceitem qualquer valor irrisório, e terminam caindo em mãos dos aliciadores.”

Garantias & Direitos

No Brasil, as leis que tratam sobre análogo à escravidão são a Constituição Federal de 1988 e o Código Penal, por meio do Artigo 149 (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), alterado pela Lei nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003, criadas para estabelecer as penalidades relativas ao crime e indicar as hipóteses em que se configura condição análoga à escravidão. Segundo reza o Artigo 149, tal condição pode ser identificada em situações de submissão do trabalhador a jornadas excessivas, trabalho forçado, más condições de trabalho, restrição do direito de ir e vir devido a dívidas contraídas com o empregador, posse de documentos e objetos e vigilância excessiva. Vale ressaltar que qualquer uma dessas condições, mesmo isoladas, configura trabalho análogo à escravidão. 

A pena pela prática é reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência. A pena pode ser aumentada para mais 50% se o crime for cometido contra criança ou adolescente e acontecer por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

Assim, as fiscalizações do Ministério de Trabalho e Emprego miram em garantias oferecidas pelo empregador relacionadas a direitos fundamentais, como salário mínimo, jornada de trabalho máxima, repouso semanal remunerado, férias e décimo terceiro salário.

Além das leis citadas, existem normas complementares, como a Portaria nº 1.129/2017 do Ministério do Trabalho, que estabelece os procedimentos para fiscalização e combate ao trabalho escravo, e a Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que proíbe a escravidão, o trabalho forçado e a servidão por dívida. Esta última trata do trabalho forçado ou obrigatório e contém 33 artigos que estabelecem as normas internacionais sobre o tema. A convenção tem como objetivo abolir todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório e garantir que os trabalhadores sejam livres para escolher o emprego que desejam. 

Entre as normas estabelecidas na Convenção 29, estão a proibição de uso de trabalho forçado ou obrigatório como meio de coação política ou punição por expressão de opinião política ou discriminação racial. 

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Além disso, a convenção determina  a obrigação dos países  signatários de tomar medidas efetivas para combater o trabalho forçado e proteger as vítimas desse tipo de exploração. O documento é um importante instrumento internacional para combater o trabalho forçado ou obrigatório em todas as suas formas, além de garantir  a dignidade e liberdade dos trabalhadores pelo mundo inteiro.
Segundo Miguel Benevides, advogado da ONG Cami, que atua nas áreas civil, criminal e previdenciária, a legislação brasileira desempenha um papel fundamental na proteção e defesa das vítimas de trabalho análogo à escravidão. “Essas medidas demonstram o compromisso do país em combater essa prática e garantir a dignidade e os direitos fundamentais de todos os trabalhadores”, reflete. “A gravidade da ofensa causada à dignidade do ser humano causa uma injusta lesão e repulsa à toda sociedade, de forma que o responsável de cometer o crime, deve arcar, além do pagamento de todas as verbas trabalhistas previstas em lei, poderá ainda ser condenado ao pagamento de indenização  por dano moral.”
Parallel Lines

Denúncia e Investigação

Segundo a procuradora Andréa Tertuliano de Oliveira, do Ministério Público do Trabalho (MPT), também coordenadora do Núcleo de Combate ao Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas (NETP) da 2ª Região, na esfera trabalhista, quando ocorre o resgate de um trabalhador em condições análogas à escravidão, o contrato de trabalho é rescindido, independentemente de ter sido formalizado ou não. 

Os empregadores são condenados ao pagamento das verbas  rescisórias, que inclui salários integrais retroativos desde o início da prestação de serviços. Além disso, devem ser calculados os valores correspondentes a férias, décimo terceiro salário, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), contribuição previdenciária (INSS) e aviso prévio. “Esses valores são considerados imprescritíveis, ou seja, não estão sujeitos a prazos para cobrança”, observa a procuradora. 

A quantia a ser paga pode ser bastante elevada, especialmente em casos em que o trabalhador tenha permanecido por longos períodos em condições precárias de trabalho. E, mesmo após o pagamento das verbas rescisórias, o empregador pode enfrentar ações judiciais por danos morais e individuais causados ao trabalhador.

Segundo Oliveira, o MPT toma conhecimento dos casos através de denúncias vindas de diversas formas, como Disk 100 e 180 e delegacias de polícia. Além disso, ela conta que há vários órgãos que coletam a denúncia através da internet, como o Ministério do Trabalho, o Ministério Público Federal  e o próprio MPT. “A gente não tem como bater de porta em porta. São 40 mil casos só no município de São Paulo, envolvendo trabalhadores, normalmente bolivianos, paraguaios, na costura, por exemplo. Para isso, precisamos de uma denúncia bem estruturada para a gente poder se organizar para ir à diligência, dizendo endereço e o tipo de  trabalho escravo, se é de costura, corte de cana de açúcar, plantio de  cebola”. 

Após receber a denúncia, o MPT coordena, junto a órgãos parceiros, uma diligência ao local, uma vez que é necessário fazer o flagrante para provar o fato ou verificar se a denúncia é falsa, o que pode acontecer. “Conforme o grau de perigo, a gente vai acompanhado pela Polícia Federal, fortemente armada, até para intimidar as pessoas e evitar um tiroteio ou briga”, explica.

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A promotora relembrou que a decisão de utilizar armas na diligência partiu de um episódio em que quatro auditores fiscais foram assassinados no município de Unaí, Minas Gerais. “Aconteceu justamente porque eles iam com a cara e a coragem. Então agora, depois da morte infeliz desses colegas, a gente sempre vai acompanhado pela Polícia Federal ou Polícia Rodoviária Federal”.

Se a diligência no local comprovar a prática de trabalho análogo à escravidão, a vítima é imediatamente retirada do local e levada para um local de hospedagem, e permanece ali enquanto são realizadas as medidas jurídicas que reivindicam o pagamento das verbas rescisórias. “Tem que tirar o trabalhador de lá no primeiro momento. É uma atitude imediata para não expô-lo mais àquela condição degradante”, reforça.
Mas o fato de o resgate ter sido feito e o ato ilícito comprovado não garante que os envolvidos reconheçam a situação ilícita e assumam as obrigações trabalhistas, como explica Andréa Tertuliano de Oliveira. “Não é sempre que o envolvido fala: "Vou por a mão na consciência, na verdade fiz errado, vou pagar. Normalmente, ele contrata advogado  e começa com um monte de meandros jurídicos e briga dali, briga daqui”. 

Isso significa que há um longo caminho pela frente.  Pode demorar bastante até que a condenação seja realizada e garanta o pagamento das verbas rescisórias e pagamento da “dor moral e individual do trabalhador”.

A princípio, a empresa ou a pessoa física que tem envolvimento com a prática é intimada para uma audiência administrativa, que tenta formalizar um termo de ajustamento de conduta. Não sendo aceito, é instaurada uma ação civil pública, que reivindica ao juiz a condenação dos envolvidos. “Muitas vezes também a gente entra com ações cautelares para resto de patrimônio, para que não haja frustração no pagamento, porque as pessoas podem desaparecer com o patrimônio: doam, dão para o filho, para a sogra, e quando a gente vai executar não tem mais patrimônio nenhum. Então essas ações cautelares também são nossa responsabilidade”, explica a promotora. 

Por isso, enquanto aguarda essas deliberações da justiça, é necessário que a vítima receba as devidas assistências jurídica, psicológica e social, que consideram as condições em que foi encontrada, meios de reaproximação com a família e a reinserção social e no mundo do trabalho, como explica a promotora.

 

 

 

 

 

Vale dizer que, além das consequências na esfera trabalhista, o empregador também é submetido a medidas administrativas. “Ele é convidado a assinar um termo de ajuste de conduta, para que não repita a prática, sob pena de multa se vier a descumprir. Na hipótese de não querer fazer isso de maneira voluntária, ele sofre uma ação civil pública. Então ele sofre uma percepção penal e pode vir até a ser preso. Como talvez a pena máxima não seja muito grande, é bem possível que ele possa cumprir em liberdade, com pagamento de indenização por cestas básicas, mas no pior dos cenários ele vai ser preso”, explica Oliveira.

No fronte: órgãos de combate
em combate contínuo

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Há vários órgãos envolvidos no combate ao trabalho análogo à escravidão, de forma colegiada. Inclusive, existe um fluxo de atendimento que foi definido para que não haja falhas no cuidado com o trabalhador resgatado e nem retrabalho ou sobreposições. 

No âmbito do Ministério Público do Trabalho, o Núcleo de Combate ao Trabalho Análogo a Escravo e Tráfico de Pessoas tem desempenhado um papel estratégico. Por meio de resgates, investigações e ações judiciais, ele busca combater crimes de exploração de trabalhadores e garantir a justiça para as vítimas. Além disso, promove políticas públicas que visam a erradicação do trabalho escravo.

E para combater tais práticas, o Ministério do Trabalho e da Previdência, por exemplo, realiza fiscalizações contínuas, através da Secretaria de Inspeção do Trabalho. O órgão atua para regularizar os vínculos empregatícios dos trabalhadores e resgatar aqueles submetidos a situações análogas à escravidão.

A batalha contra o trabalho escravo contemporâneo também é travada junto a organizações não governamentais, movimentos sociais e outras entidades engajadas. Essas instituições desenvolvem projetos de conscientização, prevenção e assistência às vítimas. Além disso, elas pressionam por mudanças legislativas e políticas públicas mais efetivas no combate a essa prática.

O combate ao trabalho escravo contemporâneo requer uma abordagem multidisciplinar e o envolvimento de toda a sociedade. Nesse sentido, a imprensa e o jornalismo também têm papel importante na denúncia dessa prática, como reconhece a promotora Andréa Tertuliano de Oliveira. No entanto, ela alerta que a imprensa precisa atuar como parceira dos órgãos públicos, para que o furo jornalístico não seja mais importante do que as vítimas e a operação organizada para resgatá-la. “É importante agir no tempo certo, sem queimar as forças-tarefas, porque é um desperdício de dinheiro público, no final das contas, e mais um prejuízo ao trabalhador que, às vezes, não vai receber nada, por conta de uma divulgação precoce”, alerta.

Vítima de trabalho análogo à escravidão

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LIBERDADE AOS 70

Dona Maria decidiu contar a sua história quantas vezes for preciso, para que seja tomada como símbolo da luta contra o trabalho análogo à escravidão no Brasil e sirva para a conscientização de outras mulheres para essa realidade. Às vésperas da publicação desta matéria, ela morreu enquanto dormia, ainda à espera de justiça.

Dona Maria (nome fictício para proteção da vítima) foi uma das 77 vítimas da exploração do trabalho doméstico resgatadas, desde 1995, pelo Ministério Público do Trabalho e pela Polícia Federal. O número 77 pertence ao universo de 61.459 pessoas submetidas ao trabalho análogo à escravidão no Brasil, desde então. De acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mais de 6 milhões de brasileiros e brasileiras dedicam-se a serviços domésticos, e 92% desse total são mulheres - em sua maioria negras, de baixa escolaridade e oriundas de famílias de menor poder aquisitivo.

Nos últimos anos, graças à divulgação nos meios de comunicação e ao trabalho de muitos atores sociais e entidades envolvidos na casa, houve um aumento do número de denúncias relacionadas a mulheres idosas que atravessaram as várias fases das suas vidas servindo gerações e gerações de uma mesma família. E foi exatamente o que aconteceu com Dona Maria, cuja história é um exemplo de como a exploração do trabalho doméstico de meninas pobres e negras ainda é uma realidade no Brasil, e ainda há muito a ser denunciado e desvendado.

Durante 33 anos, ela enfrentou uma jornada de trabalho exaustiva, que ultrapassava 20 horas de trabalho diário, vivenciou condições degradantes, como  restrição de locomoção, privação de chuveiro quente e de alimentação digna, humilhações, que incluíam xingamentos racistas, e quase desenvolveu cegueira, porque não teve acesso a tratamentos de saúde. Além disso, os patrões, que já não pagavam para a trabalhadora um salário pelos serviços prestados, tinham a posse dos seus documentos e retinham a sua aposentadoria.

Segundo a assistente social, Carla Aguilar, gerente da ONG Cami (Centro de Apoio e Pastoral do Imigrante), em situações como essas, é comum os patrões pedirem aos agentes de justiça, no momento do resgate, para que deixem a vítima continuar a viver com eles, sob a alegação de que é parte da família, mas a realidade vivenciada é bem diferente. “Essa pessoa se sentia parte da família, mas ela descobre que não era da família, quando ela se depara com tantas coisas ruins que aconteceram e, principalmente, no momento do resgate. Eles dizem que é como se fosse da família, mas ela nunca se sentou na mesa da família para comer. Ela é como se fosse da família, mas nunca teve a oportunidade de estudar. Então ela é como a família, mas não está na foto oficial da família nem no testamento”, questiona.

Dona Maria passou de uma infância difícil, em que pouco recebia cuidados maternos, para as mãos de empregadores que se aproveitavam das carências sociais e familiares  que trazia para explorar a sua força de trabalho. “Minha lembrança de criança não foi muito legal. Minha mãe trabalhava em casa de família, só que ela ficava trabalhando durante o dia e à noite ela saía, então ela me deixava sozinha, trancada ou para fora. E eu não tinha essa coisa de ter uma casa, de ter alguém que fizesse uma comida para mim”, relatou.

Dona Maria contou que, às vezes, era acolhida e alimentada por uma senhora, proprietária da casa onde morava. “Quando minha mãe chegava ela ficava brava, porque ela dizia que eu não tinha que reclamar, eu tinha que ficar quietinha”.

A situação piorou quando a mãe de Dona Maria teve um outro filho, e, poucos anos, depois descobriu que tinha câncer de mama. Ela ficou um período internada e, quando morreu, deixou os dois filhos nas mãos de familiares. O irmão de Dona Maria foi levado por uma família, e ela por outra, com quem conviveu durante um tempo. Foi nessa época que ela conheceu uma senhora que, em troca de um prato de comida, a acolheu em casa e a ajudou a sobreviver. “Foi aí que comecei a trabalhar”, disse Dona Maria. “Eu fazia faxina, lavava roupa, cuidava de criança, de idoso, de tudo, mas sempre foi trabalho duro e mal remunerado”.

Depois que foi demitida por uma outra família, para a qual serviu por duas gerações, foi trabalhar com a família de classe alta, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, com a qual permaneceu durante os últimos 33 anos, e das mãos da qual foi resgatada por agentes da justiça, após uma denúncia. Mas o sofrimento não acabou de pronto para Dona Maria, os primeiros dias de liberdade foram difíceis.

Segundo Aguilar, é comum, nos primeiros dias após o resgate, as vítimas sofrerem e sentirem saudades da família, porque muitas delas passaram a maior parte da vida junto a essas pessoas, e quase não têm outras referências. “A sociedade não pode julgá-las por isso. A gente tem que entender que, ao mesmo tempo que existiram muitos momentos ruins, também tiveram momentos bons”, pontua.

Com Dona Maria não foi diferente. Apesar de todo sofrimento ao qual foi submetida, o resgate foi um baque e deixou uma lacuna em seus dias. “No começo para mim foi muito difícil. Eu chorava de noite e queria voltar, de todo jeito. Ficava sentada pensando no que eu iria fazer, sem trabalhar, pensando nas crianças, na filha e na neta da patroa. Mas, graças a Deus, passei a ter assistência da psicóloga, comecei a fazer um tratamento. Ela é um amor para mim. Hoje estou bem. Eu nunca soube o que foi ter um Ano Novo, uma Páscoa. Primeira vez na vida que ganhei um ovo de Páscoa. Foi a primeira vez que tive um Natal maravilhoso. Isso para mim significa muito, mudou a minha vida da noite para o dia. Passei a ter remédio, comida”, comemorou

Dona Maria, em sua saga, ficou quase cega. Passou por uma avaliação para uma cirurgia de catarata, com a ajuda da ONG Cami, que a apoiou no pós-resgate, providenciando um lugar para ficar provisoriamente.  

Uma outra vítima, também acompanhada atualmente pela ONG, viveu situações semelhantes de precariedade no trabalho, exploração e maus tratos. Dona Ana (nome fictício para proteção da vítima), hoje com 70 anos, depois de uma vida que a deixou órfã, tendo que viver entre um orfanato e casas de família, sem ser, muitas vezes, remunerada, permaneceu durante 33 anos em situação análoga à escravidão. Uma família de classe média explorou os seus serviços sem fornecer 
o salário devido. Além disso, a falta de cuidados 

com a sua saúde a levou a perder todos os seus

dentes, como uma solução menos

custosa para a família.

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Para a pesquisadora Antonia

Aparecida Quintão, a

persistência de práticas

abusivas contra meninas

pobres e negras no Brasil, como

aconteceu com Dona Maria,

tem a ver com a

presença do

conservadorismo

e a resistência em

cumprir a lei, por

parte da elite.

“Essas práticas 

permanecem 

porque estão  arraigadas

nessa elite patriarcal, 

colonial e principalmente

racista. E uma das marcas da elite brasileira é que ela é branca, racista, não quer cumprir a lei. Quem tem dinheiro não quer cumprir a lei, porque acha que não tem que cumprir, tem que ter privilégios”, denúncia. “A presença de privilégios e a crença de que as leis não se aplicam a eles perpetuam injustiças e afrontam a construção de  uma sociedade mais justa.” Além disso, Quintão aponta as desigualdades sociais e a falta de conhecimento  acerca dos direitos por parte da população como um dos grandes obstáculos para o pleno exercício da cidadania. “O professor Milton Santos dizia que uma das tragédias no Brasil é que aqui tem poucos cidadãos, porque a sociedade é uma sociedade de extremos. De um lado, temos aqueles que são pobres demais e que não podem ser cidadãos, porque para você ser cidadão tem que conhecer seus direitos para ir atrás deles. O pessoal fala que o brasileiro é acomodado. Mas como é que você vai atrás de um direito que você nem sabe que existe, concorda?”. Por isso, aponta a conscientização sobre os direitos e o empoderamento dos cidadãos como elementos fundamentais para que haja uma busca efetiva por justiça. 

 Conheça a história de Dona Maria em detalhes

Ouça o podcast Filosofia Nômade, produzido pela FAPCOM

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Clique e assista ao vídeo "Dona Maria - Direitos Violados", uma experiência em realidade virtual, produzida por pesquisadores da USP e da FAPCOM

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Denuncie

Disque 100

Caso presencie ou fique sabendo de algum caso de trabalho análogo à escravidão, denuncie.  O Disque 100 é um serviço gratuito de atendimento telefônico que recebe denúncias de violações de direitos humanos, incluindo trabalho escravo e trabalho análogo a escravidão.

Você pode ligar de qualquer lugar do Brasil, 24 horas por dia.

AGRADECIMENTOS

Dona Maria (In memoriam) + 21/07/2023

Cami (Centro de Apoio e Pastoral do Migrante)

Padre Antonio Iraildo de Brito - FAPCOM

Padre Erivaldo Dantas - FAPCOM

Carla Aguilar - Cami

Roque Pattussi - Cami

Antonio de Almeida - Cami

Roger Romero - FAPCOM

Danilo de Freitas - FAPCOM

Eduardo Acquaroni - LabArteMídia (CTR-ECA-USP)

Almir Almas - LabArteMídia (CTR-ECA-USP)
Aos nossos entrevistados e entrevistadas

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